O pregador da Casa Pontifícia, Frei Raniero Cantalamessa, conduziu nesta sexta-feria, 31, a quarta pregação de Quaresma para o Papa e a Cúria Romana. Confira!
Refletimos nas duas primeiras meditações quaresmais sobre o Espírito Santo, que nos insere, nos introduz, na plena verdade sobre a pessoa de Cristo, fazendo-nos proclamá-lo Senhor e verdadeiro Deus. Na última meditação passamos do ser para o agir de Cristo, da sua pessoa para as suas obras, e, especialmente, para o mistério da sua morte redentora. Hoje nos propomos meditar sobre o mistério da sua e da nossa ressurreição.
São Paulo atribui abertamente a ressurreição de Jesus da morte, à obra do Espírito Santo. Ele diz que Cristo “foi constituído Filho de Deus com poder, segundo o Espírito de santidade, em virtude da ressurreição dos mortos” (Rm 1,4). Em Cristo, tornou-se realidade a grande profecia de Ezequiel sobre o Espírito que entra nos ossos secos, ressuscita-os dos seus túmulos e faz de um grande número de mortos “um grande exército” de ressuscitados à vida e à esperança (cf. Ez 37, 1-14).
Mas, não gostaria de continuar a minha meditação seguindo essa linha de raciocínio. Fazer do Espírito Santo o princípio inspirador de toda a teologia (intenção da assim chamada Teologia do terceiro artigo!) não significa colocar o Espírito Santo, à força, em toda afirmação, nomeando-o a cada passo. Não estaria na natureza do Paráclito que, como aquela da luz, ilumina todas as coisas permanecendo, ele próprio, por assim dizer, na sombra, como nos bastidores. Mais que falar “do” Espírito Santo, a Teologia do terceiro artigo consiste em falar “no” Espírito Santo, com tudo o que esta simples mudança de preposição comporta.
1. A ressurreição de Cristo: abordagem histórica
Antes de mais nada, digamos algo sobre a ressurreição de Cristo como fato “histórico”. Podemos definir a ressurreição como um evento histórico, no sentido usual deste termo, que é de realmente acontecido, no sentido, isto é, onde histórico se opõe a mítico e a lendário? Para expressar-nos em termos do debate recente: Jesus ressuscitou apenas no kerygma, ou seja, no anúncio da Igreja (como alguém afirmou na linha de Rudolf Bultmann), ou, pelo contrário, ressuscitou também na realidade e na história? E mais: ele ressuscitou, a pessoa de Jesus, ou ressuscitou somente a sua causa, no sentido metafórico no qual ressuscitar significa sobreviver, ou a vitória de uma ideia, após a morte da pessoa que a propôs?
Vemos, portanto, em que sentido se dá uma abordagem também histórica à ressurreição de Cristo. Não porque qualquer um de nós aqui tenha a necessidade de ser persuadido a respeito disso, mas, como disse Lucas no começo do seu evangelho, “para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” (cf. Lc 1, 4) e que transmitimos aos demais.
A fé dos discípulos, salvo algumas excepções (João, as piedosas mulheres), não resiste ao teste do seu trágico fim. Com a paixão e a morte, a escuridão cobre tudo. Seu estado de espírito emerge das palavras dos dois discípulos de Emaús: “Esperávamos que fosse ele… mas já faz três dias” (Lc 24, 21). Estamos em um beco sem saída da fé. O caso Jesus é considerado encerrado.
Agora – continuando nosso trabalho de historiadores – vamos para alguns anos, ou melhor, algumas semanas, depois. O que encontramos? Um grupo de homens, o mesmo que esteve ao lado de Jesus, que vai repetindo, em voz alta, que Jesus de Nazaré é o Messias, o Senhor, o Filho de Deus; que está vivo e que virá para julgar o mundo. O caso de Jesus não só foi reaberto, mas, em pouco tempo foi levado a uma dimensão absoluta e universal. Aquele homem afeta não só o povo de Israel, mas todos os homens de todos os tempos. “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (1Pd 2, 4), ou seja, começo de uma nova humanidade. A partir de agora, sabendo ou não, não há nenhum outro nome debaixo do céu dado aos homens, no qual é possível salvar-se, a não ser aquele de Jesus de Nazaré (cf. At 4, 12).
O que provocou tal mudança que fez com que os mesmos homens que antes haviam negado Jesus ou tinham fugido, agora dizem em público estas coisas, fundam Igrejas e se deixam, inclusive, prender, flagelar, matar por ele? Em coro, eles nos dão esta resposta: “Ressuscitou! Nós vimos!”. O ultimo ato que pode fazer o historiador, antes de ceder a palavra à fé, é verificar aquela resposta.
A ressurreição é um acontecimento histórico, em um sentido muito particular. Ela está no limite da história, como aquele fio que separa o mar da terra firme. Está dentro e fora ao mesmo tempo. Com ela, a história se abre ao que está além da história, à escatologia. É, portanto, em certo sentido, a ruptura da história e a sua superação, assim como a criação é o seu começo. Isto significa que a ressurreição é um evento em si mesmo não testemunhável e atingível com as nossas categorias mentais que são todas ligadas à experiência do tempo e do espaço. E, de fato, ninguém vê o momento em que Jesus ressuscita. Ninguém pode dizer que viu Jesus ressuscitar, mas só de tê-lo visto ressuscitado.
A ressurreição, portanto, é conhecida a posteriori, em seguida. Como é a presença física do Verbo em Maria que demonstra o fato que se encarnou; assim a presença espiritual de Cristo na comunidade, evidenciada pelas aparições, demonstra que ressuscitou. Isso explica o fato de que nenhum historiador profano diga uma palavra sobre a ressurreição. Tácito, que também lembra da morte de um “um certo Cristo” nos dias de Pôncio Pilatos[1], cala sobre a ressurreição. Aquele evento não tinha relevância e sentido a não ser para quem experimentava as suas consequências, no seio da comunidade.
Em que sentido, então, falamos de uma abordagem histórica para a ressurreição? Aquilo que se apresenta para a consideração do historiador e o permite falar da ressurreição, são dois fatos: primeiro, a súbita e inexplicável fé dos discípulos, uma fé tão tenaz a ponto de resistir até mesmo à prova do martírio; segundo, a explicação de tal fé que os interessados nos deixaram. Escreveu um exegeta eminente: “No momento decisivo, quando Jesus foi capturado e executado, os discípulos não cultivavam nenhum pensamento sobre a ressurreição. Eles fugiram e deram por encerrado o caso de Jesus. Algo teve de intervir que, em um curto espaço de tempo, não só provocou a mudança radical de seu estado de espírito, mas os levou também a uma atividade totalmente diferente e à fundação da Igreja. Esse “algo” é o núcleo histórico da fé pascal[2]”.
Foi justamente notado que, se se nega o caráter histórico e objetivo da ressurreição, o nascimento da fé e da Igreja se tornaria um mistério ainda mais inexplicável do que a própria ressurreição: “A ideia de que o imponente edifício da história do cristianismo seja como uma enorme pirâmide pendurada sobre um fato insignificante é, certamente, menos credível do que a afirmação de que todo o evento – ou seja, o dado de fato mais o significado inerente a ele – tenha realmente ocupado um lugar na história comparável ao que lhe atribui o Novo Testamento[3]”.
Qual é, então, o ponto de chegada da pesquisa histórica com relação à ressurreição? Podemos apreendê-lo nas palavras dos discípulos de Emaús. Alguns discípulos, na manhã da Páscoa, foram ao túmulo de Jesus e descobriram que as coisas estavam como haviam relatado as mulheres, que foram antes deles, “mas a ele, não o viram” (cf. Lc 24, 24). Até a história vai a sepulcro de Jesus e deve constatar que as coisas estão da forma como disseram os testemunhos. Mas ele, o Ressuscitado, não o vê. Não basta constatar historicamente os fatos, é necessário “ver” o Ressuscitado, e isso a história não pode dar, mas só a fé[4]. Quem chega correndo da terra firme rumo a costa do mar deve parar de repente; pode ir além com o olhar, mas não com os pés.
2. Significado apologético da ressurreição
Passando da história para a fé, muda também o modo de falar da ressurreição. O do Novo Testamento e da liturgia da Igreja é uma linguagem assertiva, apodíctica, que não se baseia em demonstrações dialéticas. “Mas agora Cristo ressuscitou dos mortos” (1 Cor 15, 20), diz Paulo. Aqui se está no nível da fé, não mais no da demonstração. É o que chamamos de kerygma. “Scimus Christum surrexisse a mortuis vere”, canta a liturgia do Domingo de Páscoa: “Nós sabemos que Cristo verdadeiramente ressuscitou”. Não só acreditamos, mas tendo acreditado, sabemos que é assim, disso temos certeza. A prova mais segura da ressurreição se tem depois, não antes, que se acreditou, porque então se experimenta que Jesus está vivo.
Mas o que é a ressurreição considerada do ponto de vista da fé? É o testemunho de Deus sobre Jesus Cristo. Deus Pai, que, em vida, já havia corroborado Jesus de Nazaré com prodígios e sinais, agora colocou um selo definitivo no seu reconhecimento, ressuscitando-o da morte. Em seu discurso de Atenas, São Paulo formula assim a coisa: “Deus o ressuscitou dos mortos dando, assim, a todos os homens uma prova certa sobre ele” (At 17, 31). A ressurreição é o poderoso “Sim” de Deus, o seu “Amém” pronunciado sobre a vida do seu Filho Jesus.
A morte de Cristo não era, em si, suficiente para dar testemunho da verdade de sua causa. Muitos homens – temos uma prova trágica disso em nossos dias – morrem por razões erradas, até mesmo por razões iníquas; A sua morte não torna verdadeira a sua causa; somente testemunha que eles acreditavam na verdade dela. A morte de Cristo não é a garantia da sua verdade, mas do seu amor, pois “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pela pessoa amada” (Jo 15, 13).
Somente a ressurreição é o selo de autenticidade divina de Cristo. É por isso que, a quem lhe pedia um sinal, Jesus respondeu: “Destruí este santuário, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2, 18s) e em outro lugar diz: “Não vai ser dada a esta geração nenhum sinal, a não ser o sinal de Jonas” que depois de três dias no ventre do peixe viu novamente a luz (Mt 16,4). Paulo tem razão de edificar sobre a ressurreição, como seu fundamento, todo o edifício da fé: “Se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria nossa fé. Nós seríamos falsas testemunhas de Deus… seríamos os mais dignos de compaixão de todos os homens”(1 Cor 15, 14-15,19). É possível compreender por que Santo Agostinho pode dizer que “a fé dos cristãos é a ressurreição de Cristo”. Que Cristo tenha morrido todo mundo acredita, também os pagãos, mas que tenha ressuscitado, só os cristãos acreditam, e não é cristão quem não acredita[5].
3. Significado mistérico da ressurreição
Até aqui o significado apologético da ressurreição de Cristo, que é destinado a estabelecer a autenticidade da missão de Cristo e a legitimidade da sua pretensão divina. A esse se deve acrescentar outro significado que poderemos chamar mistérico ou salvífico, em quanto que diz respeito também a nós que cremos. A ressurreição de Cristo nos diz respeito e é um mistério “para nós”, porque fundamenta a esperança da nossa própria ressurreição da morte:
“E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11).
A fé em uma vida após a morte aparece, de forma clara e explícita, apenas no final do Antigo Testamento. O segundo livro dos Macabeus é o testemunho mais avançado: “Depois de morrermos – exclama um dos sete irmãos mortos por Antíoco – (Deus) nos ressuscitará à vida nova e eternal” (cf. 2 Mac 7,1-14). Mas essa fé não nasce de repente, do nada; está enraizada vitalmente em toda a precedente revelação bíblica, da qual representa a conclusão esperada e, por assim dizer, o fruto mais maduro.
Especialmente duas certezas levaram a esta conclusão: a certeza da onipotência de Deus e a certeza da insuficiência e da injustiça da retribuição terrena. Aparecia sempre mais evidente – especialmente depois da experiência do exílio – que a sorte dos bons neste mundo é tal que, sem a esperança de uma retribuição diferente dos justos após a morte, seria impossível não cair no desespero. Nesta vida, de fato, tudo acontece da mesma forma ao justo e ao ímpio, tanto na felicidade quanto na desgraça. O livro do Coélet representa a expressão mais lúcida desta amarga conclusão (cf. Ecl 7, 15).
O pensamento de Jesus sobre o assunto é expresso na discussão com os Saduceus sobre o caso da mulher que teve sete maridos (Lc 20, 27-38). De acordo com a revelação bíblica mais antiga, a mosaica, eles não aceitaram a doutrina da ressurreição dos mortos que consideravam uma novidade. Referindo-se à lei do levirato (Dt 25: a mulher que ficou viúva, sem filhos homens, deve casar-se com o cunhado), eles especulam o caso limite de uma mulher que, dessa forma, passou por sete maridos. No final, com a certeza de ter demonstrado o absurdo da ressurreição, perguntam: “Esta mulher, na ressurreição, de quem será esposa”?
Sem se afastar do terreno escolhido pelos seus adversários, com poucas palavras, Jesus primeiro revela onde está o erro dos saduceus e o corrige, depois, dá à fé na ressurreição a sua fundamentação mais profunda e mais convincente. Jesus se pronuncia sobre duas coisas: sobre o modo e sobre o fato da ressurreição. Quanto ao fato de que haverá uma ressurreição dos mortos, Jesus recorda o episódio da sarça ardente, onde Deus se proclama “Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó”. Se Deus se proclama “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, quando Abraão, Isaac e Jacó morreram há gerações, e se, por outro lado, “Deus é Deus dos vivos e não dos mortos”, então quer dizer que Abraão, Isaac e Jacó estão vivos em algum lugar!
Mais do que sobre a resposta de Jesus aos Saduceus, a fé na ressurreição se fundamenta no fato da sua ressurreição da morte. “Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, exclama Paulo, como podem dizer alguns de vocês que não existe ressurreição dos mortos? Se não existe ressurreição dos mortos, nem sequer Cristo ressuscitou!” (1 Cor 15,12-13). É absurdo pensar em um corpo, cuja cabeça reina gloriosa no céu e cujo corpo se decompõe eternamente na terra ou acabe no nada.
A fé cristã na ressurreição dos mortos responde, além disso, ao desejo mais instintivo do coração humano. Nós – diz Paulo – não queremos ser despojados do nosso corpo, mas revestidos, ou seja, não queremos sobreviver com uma parte somente do nosso ser – a alma – , mas com todo o nosso eu, alma e corpo; por isso, não desejamos que o nosso corpo mortal seja destruído, mas que “seja absorvido pela vida” e se vista, ele próprio, de imortalidade (cf. 2 Cor 5, 1-5; 1 Cor 15, 51-53).
Da vida eterna, nós não só temos nesta vida uma promessa: nós também temos “as primícias” e o “sinal” (ou arras, ndt). Jamais se deveria traduzir o termo grego arrabôn usado por São Paulo a respeito do Espírito (2 Cor 1, 22; 5,5; Ef 1, 14) com “penhor” (pignus), mas só com sinal. Santo Agostinho explicou muito bem a diferença. O penhor, diz, não é o começo do pagamento, mas algo que se dá enquanto se espera o pagamento; assim que o pagamento é feito, o penhor é devolvido. Não acontece isso com o sinal. Ele não é devolvido no momento do pagamento, mas completado. Já faz parte do pagamento. “Se Deus, por meio do seu Espírito, nos deu como sinal o amor, quando nos for dada toda a realidade, nos será tirado o sinal? Certamente que não, mas o que já foi dado será completado[6]”.
Como “as primícias” anunciam a safra cheia e são parte dela, assim o sinal é parte da posse plena do Espírito. É o “Espírito que habita em nós” (Rm 8,11), mais que a imortalidade da alma, que garante, como se vê, a continuidade entre a nossa vida presente e aquela futura.
Sobre o modo da ressurreição, naquela mesma ocasião Jesus afirma a condição espiritual dos ressuscitados: “Aqueles que são considerados dignos do outro mundo e da ressurreição dos mortos, não tomam mulher nem marido; e nem podem mais morrer, porque são iguais aos anjos e, sendo filhos da ressurreição, são filhos de Deus”.
Foi feita uma tentativa de ilustrar a transição da condição terrestre para aquela de ressuscitados com exemplos tirados da natureza: a semente da qual brota a árvore, a natureza morta no inverno que ressurge na primavera, a lagarta que se transforma em uma borboleta. Paulo simplesmente diz: “semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico ressuscita corpo espiritual”(1 Cor 15, 42- 44).
A verdade é que tudo o que diz respeito à nossa condição no pós-vida permanece um mistério impenetrável; não porque Deus quis mantê-lo escondido, mas porque, como somos forçados a pensar em tudo nas categorias de tempo e espaço, não temos as ferramentas para representá-lo. A eternidade não é uma entidade que existe a parte e que pode ser definida em si mesma, como se fosse um tempo esticado infinitamente. É o modo de ser de Deus. A eternidade é Deus! Entrar na vida eterna significa simplesmente ser admitidos, por graça, a compartilhar o modo de ser de Deus.
Tudo isso não teria sido possível se a eternidade não tivesse antes entrado no tempo. É em Cristo ressuscitado e graças a ele que nós podemos revestir o modo de ser de Deus. São Paulo se representa aquilo que o espera depois da morte como um “ir para estar com Cristo” (Fl 1,23). A mesma coisa pode ser deduzida a partir da palavra de Jesus ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). O paraíso é um ser “com Cristo”, como seus “herdeiros”. A vida eterna é um reunir-se dos membros com a cabeça, um “apinhar-se” com ele na glória, depois de ter estado unido com ele no sofrimento (Rm 8,17).
Uma boa história contada por um escritor alemão moderno nos ajuda a nos dar um sentido de vida eterna mais do que todas as tentativas racionais de explicação. Em um mosteiro medieval moravam dois monges ligados entre si por profunda amizade espiritual. Um se chamava Rufus e o outro Rufinus. Em todo o seu tempo livre a única coisa que faziam era tentar imaginar e descrever como seria a vida eterna na Jerusalém celeste. Rufus que era um mestre-de-obras imaginava-a como uma cidade com portas de ouro, cravejada de pedras preciosas; Rufinus que era organista, como toda ressoante de celestes melodias.
No final, fizeram um pacto: qualquer um deles que tivesse morrido primeiro deveria voltar na noite seguinte, para garantir ao amigo que as coisas eram assim como eles haviam imaginado. Teria sido suficiente uma palavra. Se fosse como eles tinham pensado, se deveria dizer simplesmente: taliter!, ou seja, isso mesmo;! se – mas era completamente impossível – fosse de outra forma, deveria dizer: aliter, diferente!
Uma noite, enquanto estava no órgão, o coração de Rufino parou. O amigo velou ansiosamente toda a noite, mas nada; esperou em vigílias e jejuns por semanas e meses, e nada. Finalmente, no aniversário da sua morte, eis que, à noite, em um halo de luz, entra na sua cela o amigo. Vendo que silencia, é ele que lhe pergunta, confiante na resposta afirmativa: taliter? É tão verdade? Mas o amigo balança a cabeça em sinal negativo. Em desespero, grita: aliter? É diferente? Mais uma vez um sinal negativo da cabeça. E, finalmente, dos lábios fechados do amigo, em um instante, duas palavras: totaliter aliter: Totalmente diferente! Rufus entende em um flash que o céu é infinitamente mais do que eles tinham imaginado, que não pode ser descrito, e logo depois morre também ele, pelo desejo de alcançá-lo[7].
O fato, é claro, é uma lenda, mas o seu conteúdo é bastante bíblico. “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o corçaão do homem não percebeu, tudo o que Deus preparou para os que o amam” (1 Cor 2, 9). São Simeão, o Novo Teólogo, um dos santos mais amados na Igreja Ortodoxa, teve uma visão um dia; estava certo de ter contemplado Deus em pessoa e, com a certeza de que não poderia haver nada maior e mais radioso do que tinha visto, disse: “Se o céu é isso, me basta!” O Senhor lhe respondeu: “Es realmente bem mesquinho, se te contentas com estes bens, porque, com relação aos bens futuros, esses são como um céu pintado no papel, em comparação ao céu real[8]”.
Quando se quer atravessar um braço de mar, dizia Santo Agostinho, a coisa mais importante não é sentar-se na costa e aguçar a visão para ver o que está do outro lado, mas é subir no barco que leva àquela margem. E também para nós a coisa mais importante não é especular sobre como será a nossa vida eterna, mas fazer as coisas que sabemos que nos levam a ela[9]. Que o nosso dia de hoje seja um pequeno passo em direção a ela.
[1] Tacito, Anais 25.[2] Martin Dibelius, Iesus, Berlim 1966, p. 117.
[3] Charles H. Dodd, History and the Gospel, London 1964, p.76 (ed. Italiana Storia ed Evangelo, Brescia 1976, p. 87).
[4] Cf. Søren Kierkegaard, Diario, X, 4, A, 523.
[5] Cf. S. Agostinho, Enarr. in Psalmos, 120, 6 (CCL, 40, p 1791).
[6] S. Agostinho, Discursos, 23, 9 (CC 41, p. 314).
[7] H. Franck, Der Regenbogen. Siebenmalsieben Geschichten, Leipzig 1927.
[8] S. Simeão Novo Teólogo, Segunda oração de agradecimento (SCh 113, p. 350).
[9] Agostinho, A Trindade IV,15,30; Confissões, VII, 21.
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Tradução gentilmente cedida por Thácio Siqueira.
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